sábado, 23 de agosto de 2008

Sobre o amor e indivíduos ou Tristão e Isolda

O homem nasce pelo amor.
Rebaixado de todo heroísmo,
Volta-se como prisioneiro
Insolúvel de si mesmo.

É ali que procura o outro.
De reminiscências da memória
Ou nas invenções que permite
A criatividade momentânea.

Tudo se projeta internamente,
Em ilusão limitada e míope
Dos reflexos que vem de fora.

Mas, é apenas no íntimo sentido
Que surge o amor do indivíduo,
Onde se forma a verdade humana.

Incêndio

Alexandria nos meus olhos, queima
Uma pira de livros e poemas.
Tardes e noites em pó de cinzas
Sem intervalos, noites e dias...

Na voz do vento o verso cala.
Todo o sentimento vai... vai...
Vai embora por estradas de ar
Que assobiam... Até nunca mais...

No esteio de algum horizonte,
Talvez os retalhos se encontrem
Na forma de um eco vibrante

E na cor de outros olhos, queimem
Amarelos e vermelhos, poemas novos
E novas despedidas, eternamente.

Apresentação

A sala é um retângulo mal humorado de cadeiras vermelhas – uma grande boca. Na mesa, quatro tremeluzentes bandeirantes: um luso-coreano a equilibrar a cabeça, uma morena-loura saída da cadeia, uma manicure-de-interior-quase-bárbie e, no centro, o herói desta petite histoire – o Marinheiro.
Do outro lado da opressão, nos dentes da grande boca, meio abertos, meio fechados, ruminamos o almoço – sono.
Enquanto a loura-morena fala megafônica o recorte do fragmento de um pensamento fragmentado, entra, por um dos vértices do retângulo, a pequena Apache - sólida sobre seus tênis.
O que faz tudo isso relevante, especial, é que no centro da mesa o Marinheiro afoga os lábios, tenta segurar o resumo de uma alegria genuína: _ Aí está ela!
Eu, voyeur, fotógrafo no olhar, caminho pelo retângulo paralisado e vejo toda a imensa boca nos sorrir em sentimento. Agora sim, podemos continuar.
Atendendo a pedidos, posto aqui o material que saiu na Revista Nova Escola de agosto sobre o meu trabalho com o Projeto Douradinho. Para quem quer conhecer mais é só entrar no site http://www.projetodouradinho.com.br/. Inté!

Incentivar o hábito de ler entre alunos da rede pública e ainda fazer da literatura um instrumento de educação ambiental. Esse foi o mote do Projeto Douradinho, que teve como ponto de partida o livro Amiga Lata, Amigo Rio, escrito pelo jovem autor fluminense Thiago Cascabulho e ilustrado por Gilberto Cortes. O enredo tem como personagem principal um peixe cascudo, que vive em um rio poluído. Quando uma lata dourada se prende à sua nadadeira, ele ganha o apelido de Douradinho. Na ficção, a dupla conhece as causas da degradação ambiental e aprende a combatê-la. Com seu apelo instantâneo no imaginário infantil, Douradinho extrapolou os limites da literatura e nadou para fora da obra. Entre abril e junho passados, sua saga foi tema de 61 palestras em escolas municipais e estaduais de Goiás, Maranhão, Bahia, Tocantins e Distrito Federal.
A iniciativa é inovadora por trazer a combinação de três questões fundamentais ao debate no século XXI: democratização da cultura, preservação ambiental e responsabilidade social. Idealizado pela Caraminholas Produções, o projeto serve com exemplo de bom uso da Lei de Incentivo à Cultura (Rouanet). Um total de 10.000 exemplares do livro e 4.500 projetos pedagógicos foram distribuídos a escolas públicas, com patrocínio da Terna Participações, empresa italiana que atua no setor de transmissão de energia. Através de um cartão postal em branco entregue nas palestras, 35.000 crianças saíram da condição de leitor e transformaram-se em agentes criativos. Após o contato com o autor, elas expressaram suas idéias e ganharam voz na luta pela preservação da natureza.
A cada etapa, o Projeto Douradinho foi documentado no site http://www.projetodouradinho.com.br/, que já mostra ser uma importante janela no intercâmbio de conhecimento. Estão lá fotos, notícias e um diário do autor em suas viagens país afora. O livro também está disponível para download, mostrando que a internet pode funcionar como ferramenta para viabilizar a literatura infantil. Durante e depois das palestras, a crescente participação de estudantes e o engajamento de educadores fizeram crer que o pequeno peixe deverá nadar por muitos outros lugares, criando uma nova consciência ecológica. “É emocionante ver o interesse dos professores e a interação dos alunos com o projeto”, conta Cascabulho, que foi saudado com faixas e cartazes em cidades que visitou.
O autor, aliás, desponta como nome promissor de sua geração. Tem 27 anos e escreveu Amiga Lata, Amigo Rio com apenas 19. Antes de viabilizar a publicação do livro, seu personagem foi tema de palestras sobre meio ambiente e oficinas de literatura no Rio de Janeiro, virou peça de teatro e fez uma participação na programação infantil Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP. A experiência de viajar pelo Brasil com o Projeto Douradinho, porém, fez Thiago se deparar com lições reais de criatividade e preservação, caso de um músico baiano que transforma latões em flautas, uma bibliotecária que dá palestras para incrementar o baixo índice de leitura na pequena Ibicoara (BA) e um mutirão que transformou um terreno baldio em jardim, na cidade de Imperatriz (MA). “Acho que aprendi muito mais que ensinei”, diz Thiago, que ainda acredita ver seu personagem nadar em outras águas.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Dia do Elefante

Foi a tia que me acordou (acordou?). Depois, o banheiro que será de azulejos desenhados e o tapete de bolinhas. O único fato é a espuma nos pés. Marcante o prazer de te lavarem as dobras dos dedos... Depois, meticulosamente me penteiam os cabelos de lado. E falam, e falam. Eu só sei que é branco o armário (sei?).

Outra vez na rua (outra vez?), que está cheia. Vou carregado... O pensamento finge um vôo (finge?). O circo está ali. Depois, dou risada com alguma coisa... E falam, e falam. Me apontam um palhaço puxando uma corda. Era um palhaço? Não, o palhaço vai ser depois da lona desbotada.

Cheiro de serragem pela primeira vez (foi?). Na outra esquina, depois do prédio que vai ser amarelo, no terreno vazio, pessoas olham. E falam, e falam. Vou chegando por cima...
Lá no fundo, no fundo, fundo: o Elefante. Enorme. Ele mastiga cana de açúcar. Mastiga. E olha para mim. Olha.

De volta para casa, caminho de mãos dadas. Pertinho, um carro encosta na calçada. Era o pai de embrulho no colo.
Minha irmã.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Getulinho Filé de Borboleta

A mãe deu o nome de Getúlio, Getulinho. Pouco depois era Getulinho Filé de Borboleta, pela magreza. Com o tempo ficou mesmo só Filé.
Filé já me fazia levitar antes da concepção. Isso não significa que era humorista, palhaço ou cínico. Tinha daquelas almas leves, do barro mais fino. Uma raridade.
Como você não pode duvidar de mim, conto sem vergonha: Filé saiu de um parto sem dor, às gargalhadas. A parteira, espantada, gritou – Assombração! Até eu fiquei preocupado e olhei para os lados, sem nada ver, claro. Foi a primeira peça que Filé me pregou.
Fato triste, mas, quando a mãe viu o bebê sapeca, sorriu o mais belo sorriso e disse, antes de morrer de alegria: Getúlio! Getulinho! E morreu. De alegria. Mas morreu. Mesmo.
Na época das fraldas foi criado por um grupo de maritacas, as solteironas do lugar. Falou rápido, e sua primeira palavra foi – Sorvete!, acompanha de um beijo na propaganda da TV.
Com sete anos foi pego colando na escola. No pequeno papel, a tabuada do 8... mas a prova era de português. Getulinho não era burro, mas tinha um medo tão terrível de números, que nunca conseguiu sair do segundo ano.
Pelo resto de sua vida nunca teve casa certa, pelo menos que eu saiba. Filé conseguia driblar minha onipresença e onisciência... Ou melhor, confesso que me permiti esse mistério.
Fato que Getulinho Filé de Borboleta era propriedade da cidade. Passava os dias aqui, acolá, ora na padaria da praça, ora na oficina mecânica, ora no armarinho comercial etc. Todos queriam sua companhia, mesmo que ficasse apenas quieto, escutando - uma raridade, claro.
Mesmo não freqüentando a sala de aula, vira e mexe estava na escola, na biblioteca. Filé devorava os livros para depois contar as aventuras para as pessoas. Me peguei desconcentrado do trabalho várias vezes só para escutar o Filé. Eita peste! Sabe aquela Tsunami? Foi Getulinho falando o Dom Quixote.
Nunca trabalhou. Nunca teve um emprego. Não precisava de dinheiro, comprar sapatos, roupa, relógio - aliás, Filé nunca perguntou - Que horas são? - ou comida. O magricela andava sempre arrumadinho, limpinho e de barriga cheia. Mas também não era vagabundo. A cidade sabia pagar, a seu modo, por sua função.
Não teve namoradas. Filé, como bem coletivo, era de todas as ruas e casas. Exercia uma paixão secreta, uniforme, contínua, sem rompantes, sadia. Uma paixão sem necessidade de apaixonados.
Portanto, não teve filhos. Mas não foi apenas uma criança que chamou – Papai!, ao ver Getulinho passar. Na minha eternidade, uma pontada de inveja – inveja branca, claro – por tamanha aceitação.
Morreu velhinho, no dia 25 de dezembro, outra de suas pegadinhas. Foi o Natal mais quente em 2.000 anos.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Carta

Prezada Doutora,
Lamento os meses de ausência. Garanto que não foi por fuga ou negligência com suas indicações. Estive realmente distante, partido em muitos, passado em um prisma qualquer, talvez a apatia... Pergunto-me se não seria tudo isso conseqüência do tratamento. Só agora sinto os dedos formigarem.
Em resposta a sua pergunta, fique tranqüila. Não tenho mais tormentos de sono. Agora durmo noites sem histórias. No entanto, quando acordado, sinto soar em mim a velha canção tal qual um mantra de fogo, que se reconstrói dia-a-dia, sempre inacabado e pedindo mais - Pássaro dos infernos!
Só ontem entendi o que quis dizer com “projeção”. Lamento concordar.Mas, se esta é a realidade que tenho... As reticências são um alívio! Só Deus sabe das minhas represas. Só ele! Vê-se que ainda estou aprendendo a conjugar novos verbos.
“Todo en ti fue naufragio!”, como você diz. Que a palavra seja – sempre – a única recompensa dos afogados.
Lembranças
Seu paciente